Mortes no Everest em 2006
Para os brasileiros, a primavera passada no Everest só não passou em brancas nuvens porque o paulista Vitor Negretti morreu ao descer do cume em 18 de maio, o mesmo dia em que a polonesa Martyna Wojciechowentrava para a história do Himalaia como a primeira capa da “Playboy” a pisar no topo da montanha mais alta do mundo.
Negretti, um veterano do alpinismo brasileiro, fizera tudo pelo caminho mais difícil – a face norte, com licença comprada na Asian-Treckking, uma agência de Katmandu que opera com preços baixos e serviços míninos o acesso ao Everest por território chinês. Ele fez questão de subir sem garrafas de oxigênio, dois dias depois de descobrir que dera ladrão no bivaque do Campo Dois, levando-lhe a comida e a tenda como se estivessem numa esquina qualquer do Rio de Janeiro.
Negretti foi em frente com equipamento emprestado. Na volta, o mal da altitude matou-o, a 30 graus abaixo de zero. A sua foi uma das 11 baixas da temporada, a pior desde 1996, que o escritor americano Jon Krakauer, com o livro “No ar rarefeito”, consagrou nos anais da patologia esportiva. Agora, chega às bancas a edição de setembro da revista “Outside”, especializada em viagens de aventura. É um balanço desse modelo comercial de montanhismo extremo. Na capa, o título “A mixórdia no Everest” já diz tudo.
Circo na montanha
É uma reportagem que merece a leitura de quem gosta e de quem não gosta de aventura. Discute “o colapso moral do alpinismo”, que Sir Edmund Hillary, o decano do Everest, classifica como “horripilante”. Entre outras coisas porque, segundo ele, as pessoas agora “só querem chegar no alto, sem dar a mínima para quem mais possa estar em crise”. Em outras palavras, “a montanha virou um circo”, como disse o basco Juan Oiarzabal, do alto dos 14 picos acima de 8 mil metros que ele já escalou.
Duzentas pessoas já morreram no Everest, desde que começou a ser desafiado em 1920. E o recorde de tragédias continua a ser o de 1996, com 12 mortos, 8 no mesmo dia. Mas este ano o coro de críticas ao comportamento das expedições comerciais seguiu a batuta do neozelandês Mark Inglis, que aos 46 anos foi lá para virar o primeiro homem a subir a montanha mais alta do mundo depois de sofrer amputações parciais nas duas pernas. Conseguiu, mas o barulho de seu feito acabou abafado pela entrevista que ele mesmo deu à TV neozelandesa, contando que “cerca de 40 pessoas” haviam passado por um montanhista agonizante, sem parar para socorrê-lo.
A vítima era o inglês David Sharp. E sua história não foi bem a que Inlgis contou. Ele tinha 34 anos. Fazia a terceira tentativa de conquistar o Everest. Falhara em 2003 e 2004. Dessa vez, como Negretti, usou os descontos da Asian Treckking, para baratear a aventura. Não tinha guia nem sherpa. Levava duas garrafas de oxigênio, em vez das cinco de praxe. Não tinha rádio para pedir ajuda.
Pernas de madeira
Sharp foi achado no dia 15 de maio pelo Dewa Sherpa, contratado para botar em cima da montanha a primeira mulher turca, Burçak Poçan, que desmaiou a poucos metros do cume. Ela recobraria os sentidos uma hora depois. Mas Sherpa teria que levá-la para baixo, com outro guia, carregando Poçan como se levassem uma inválida por uma crista gelada, ladeada por precipícios quilométricos.
O esforço foi tamanho que Sherpa distendeu os músculos do tórax num acesso de tosse. Foi nesse estado que, a mais de 8 mil metros de altitude, ele avistou o inglês. Ele parecia uma alucinação. Estava num ponto da encosta marcado pelo cadáver de um indiano, que morreu ali em 1996 e acabou conhecido simplesmente como Botas Verdes. Sharp estava a seus pés. “Parece um novo corpo”, disse Sherpa ao outro guia. E foi até lá para ver. Encontrou o inglês ainda vivo. Já não conseguia falar. Só olhava para ele, ao ouvir suas perguntas. Como se chamava? Quem ela seu guia? Nada.
Tinha as “pernas parecendo madeira”, o rosto “já tinha ido embora, preto, preto, preto”, Sherpa contaria mais tarde ao repórter Ed Douglas. O guia arrancou as estalactites que se haviam formado nas narinas de Sharp. Auscultou-lhe o peito. E decidiu que não havia nada a fazer. “Foi muito difícil”, ele disse. Mas pegaram Poçan e deixaram Sharp onde estava. O marido de Poçan e outro alpinista turco alcançaram o grupo ainda a tempo de servir a Sharp um pouco de água quente. Mas Poçan ameaçava desmaiar novamente. E eles baixaram, notando que o inglês não reagia mais. Sharp ainda seria encontrado vivo pelo resto da expedição turca. Os montanhistas deram a Sharp oxigênio e o arrastaram para uma borda da encosta, onde poderia ser aquecido por um pouco de sol. Depois, sem conseguir mantê-lo de pé, retomaram a descida para o acampamento.
Everest em liquidação
Quando os objetos pessoais de Sharp foram recolhidos no acampamento base, conta a “Outside”, “uma pequena tira de papel continha mais sobre a verdadeira história do Everest do que todos os metros de tinta de imprensa que se seguiriam”. Era um recibo no valor de US$ 7.490. Ou seja, tudo o que ele gastou nessa terceira e última investida sobre a montanha. Quem chega ao topo e volta para contar a história geralmente paga US$ 40 mil.
A história do neozelandês Mark Inglis tinha sido mal contada. Não era verdade que 40 alpinistas haviam passado por Sharp sem fazer nada. O que eles podiam fazer era pouco. Inglis, aliás, também pagou caro pelo desafio. Perdeu as pontas de cinco dedos, gangrenadas pelo congelamento. E, mais tarde, o que restava de suas pernas teve que passar por novas amputações.
Com o tempo, ele iria retificar suas primeiras declarações, televisionadas ainda a quente, de Katmandu, admitindo que suas lembranças daquele momento eram, no mínimo, confusas. Acima dos 8 mil metros, ele explicaria depois, “já é difícil manter-se vivo”. Ele recordava vagamente seus esforços para se aquecer e de “usar mais as mãos do que os escaladores com pernas”. Perdeu a certeza de que chamara pelo rádio o chefe da expedição no acampamento, pedindo ajuda para Sharp. Mas, como ele mesmo havia tomado a iniciativa de abrir o debate, caiu sobre seu relato uma tempestade de críticas azedas. Mesmo se Inglis é, tecnicamente, um deficiente físico.
Há dezenas de outros depoimentos dramáticos nesta edição de “Outside”, sugerindo que a era do circo pode estar acabando melancolicamente no Everest. A revista publica até conselhos úteis para quem quiser tentar daqui para a frente a mesma aventura pelos caminhos que passem o mais longe possível das ofertas mais grosseiras de comercialização do perigo. E para os outros leitores, provavelmente interessados em ficar o mais longe possível do Everest, a revista oferece histórias inesquecíveis sobre o ponto aonde pode levar o desrespeito pela natureza.
Marcos Sá Corrêa
(Catei daqui.)
Negretti, um veterano do alpinismo brasileiro, fizera tudo pelo caminho mais difícil – a face norte, com licença comprada na Asian-Treckking, uma agência de Katmandu que opera com preços baixos e serviços míninos o acesso ao Everest por território chinês. Ele fez questão de subir sem garrafas de oxigênio, dois dias depois de descobrir que dera ladrão no bivaque do Campo Dois, levando-lhe a comida e a tenda como se estivessem numa esquina qualquer do Rio de Janeiro.
Negretti foi em frente com equipamento emprestado. Na volta, o mal da altitude matou-o, a 30 graus abaixo de zero. A sua foi uma das 11 baixas da temporada, a pior desde 1996, que o escritor americano Jon Krakauer, com o livro “No ar rarefeito”, consagrou nos anais da patologia esportiva. Agora, chega às bancas a edição de setembro da revista “Outside”, especializada em viagens de aventura. É um balanço desse modelo comercial de montanhismo extremo. Na capa, o título “A mixórdia no Everest” já diz tudo.
Circo na montanha
É uma reportagem que merece a leitura de quem gosta e de quem não gosta de aventura. Discute “o colapso moral do alpinismo”, que Sir Edmund Hillary, o decano do Everest, classifica como “horripilante”. Entre outras coisas porque, segundo ele, as pessoas agora “só querem chegar no alto, sem dar a mínima para quem mais possa estar em crise”. Em outras palavras, “a montanha virou um circo”, como disse o basco Juan Oiarzabal, do alto dos 14 picos acima de 8 mil metros que ele já escalou.
Duzentas pessoas já morreram no Everest, desde que começou a ser desafiado em 1920. E o recorde de tragédias continua a ser o de 1996, com 12 mortos, 8 no mesmo dia. Mas este ano o coro de críticas ao comportamento das expedições comerciais seguiu a batuta do neozelandês Mark Inglis, que aos 46 anos foi lá para virar o primeiro homem a subir a montanha mais alta do mundo depois de sofrer amputações parciais nas duas pernas. Conseguiu, mas o barulho de seu feito acabou abafado pela entrevista que ele mesmo deu à TV neozelandesa, contando que “cerca de 40 pessoas” haviam passado por um montanhista agonizante, sem parar para socorrê-lo.
A vítima era o inglês David Sharp. E sua história não foi bem a que Inlgis contou. Ele tinha 34 anos. Fazia a terceira tentativa de conquistar o Everest. Falhara em 2003 e 2004. Dessa vez, como Negretti, usou os descontos da Asian Treckking, para baratear a aventura. Não tinha guia nem sherpa. Levava duas garrafas de oxigênio, em vez das cinco de praxe. Não tinha rádio para pedir ajuda.
Pernas de madeira
Sharp foi achado no dia 15 de maio pelo Dewa Sherpa, contratado para botar em cima da montanha a primeira mulher turca, Burçak Poçan, que desmaiou a poucos metros do cume. Ela recobraria os sentidos uma hora depois. Mas Sherpa teria que levá-la para baixo, com outro guia, carregando Poçan como se levassem uma inválida por uma crista gelada, ladeada por precipícios quilométricos.
O esforço foi tamanho que Sherpa distendeu os músculos do tórax num acesso de tosse. Foi nesse estado que, a mais de 8 mil metros de altitude, ele avistou o inglês. Ele parecia uma alucinação. Estava num ponto da encosta marcado pelo cadáver de um indiano, que morreu ali em 1996 e acabou conhecido simplesmente como Botas Verdes. Sharp estava a seus pés. “Parece um novo corpo”, disse Sherpa ao outro guia. E foi até lá para ver. Encontrou o inglês ainda vivo. Já não conseguia falar. Só olhava para ele, ao ouvir suas perguntas. Como se chamava? Quem ela seu guia? Nada.
Tinha as “pernas parecendo madeira”, o rosto “já tinha ido embora, preto, preto, preto”, Sherpa contaria mais tarde ao repórter Ed Douglas. O guia arrancou as estalactites que se haviam formado nas narinas de Sharp. Auscultou-lhe o peito. E decidiu que não havia nada a fazer. “Foi muito difícil”, ele disse. Mas pegaram Poçan e deixaram Sharp onde estava. O marido de Poçan e outro alpinista turco alcançaram o grupo ainda a tempo de servir a Sharp um pouco de água quente. Mas Poçan ameaçava desmaiar novamente. E eles baixaram, notando que o inglês não reagia mais. Sharp ainda seria encontrado vivo pelo resto da expedição turca. Os montanhistas deram a Sharp oxigênio e o arrastaram para uma borda da encosta, onde poderia ser aquecido por um pouco de sol. Depois, sem conseguir mantê-lo de pé, retomaram a descida para o acampamento.
Everest em liquidação
Quando os objetos pessoais de Sharp foram recolhidos no acampamento base, conta a “Outside”, “uma pequena tira de papel continha mais sobre a verdadeira história do Everest do que todos os metros de tinta de imprensa que se seguiriam”. Era um recibo no valor de US$ 7.490. Ou seja, tudo o que ele gastou nessa terceira e última investida sobre a montanha. Quem chega ao topo e volta para contar a história geralmente paga US$ 40 mil.
A história do neozelandês Mark Inglis tinha sido mal contada. Não era verdade que 40 alpinistas haviam passado por Sharp sem fazer nada. O que eles podiam fazer era pouco. Inglis, aliás, também pagou caro pelo desafio. Perdeu as pontas de cinco dedos, gangrenadas pelo congelamento. E, mais tarde, o que restava de suas pernas teve que passar por novas amputações.
Com o tempo, ele iria retificar suas primeiras declarações, televisionadas ainda a quente, de Katmandu, admitindo que suas lembranças daquele momento eram, no mínimo, confusas. Acima dos 8 mil metros, ele explicaria depois, “já é difícil manter-se vivo”. Ele recordava vagamente seus esforços para se aquecer e de “usar mais as mãos do que os escaladores com pernas”. Perdeu a certeza de que chamara pelo rádio o chefe da expedição no acampamento, pedindo ajuda para Sharp. Mas, como ele mesmo havia tomado a iniciativa de abrir o debate, caiu sobre seu relato uma tempestade de críticas azedas. Mesmo se Inglis é, tecnicamente, um deficiente físico.
Há dezenas de outros depoimentos dramáticos nesta edição de “Outside”, sugerindo que a era do circo pode estar acabando melancolicamente no Everest. A revista publica até conselhos úteis para quem quiser tentar daqui para a frente a mesma aventura pelos caminhos que passem o mais longe possível das ofertas mais grosseiras de comercialização do perigo. E para os outros leitores, provavelmente interessados em ficar o mais longe possível do Everest, a revista oferece histórias inesquecíveis sobre o ponto aonde pode levar o desrespeito pela natureza.
Marcos Sá Corrêa
(Catei daqui.)
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